Estamos em São Petersburgo, na Rússia, caminhando através de dezenas de salas do imenso e famoso palácio de Inverno, morada durante quase duzentos anos dos famosos Tzares. Neste palácio, parte de um complexo maior chamado Hermitage Museum, um grupo de visitantes entra por uma pequena lateral; entramos por ali também e passamos a fazer a visita acompanhando um desses visitantes. Em cada uma dessas salas nos encontramos em um diferente período da história da Rússia. A visita é guiada pelo mestre de cerimônias - um fantasma - que representa a Europa e encontra diversos personagens históricos. Este é na verdade o tema do filme "Arca Russa", do cineasta Aleksandr Sokurov, gravado nesse museu no ano de 2.001. Após intensivos ensaios com mais de 2.000 figurantes o filme inteiro foi rodado em um único dia, 23 de dezembro desse ano, com tempo disponível de apenas 4 horas para aproveitar a iluminação natural.

O que chama a atenção é como ele foi rodado: em um único plano sequência, de pouco mais de uma hora e meia (96 minutos). Não, o filme não foi rodado em película e esse foi um dos motivos para Sokurov ter esperado mais de 10 anos para realizar seu projeto, a muito tempo planejado. A idéia de longas cenas, sem interrupções (os chamados plano sequência) vez ou outra torna-se obsessão para alguns diretores - Hitchcock quis fazer isso em “Festim Diabólico” mas foi obrigado a disfarçar diversos cortes devido à impossibilidade prática de uma câmera de cinema capaz de rodar os 80 minutos do filme em um único rolo. Arca Russa foi rodado em alta definição sem compressão com uma Sony HDW-F900 - utilizada também por George Lucas pouco antes no segundo episódio de Star Wars - com seu sinal sendo enviado através de cabos diretamente para um HD de 1 terabyte - algo raro na época - capaz de armazenar 100 minutos de gravação, suficientes para o projeto de Sokurov.

Um plano sequência de 96 minutos nesse caso poderia ser rodado com a câmera fixa em um tripé (existiam vários filmes com cenas desse tipo), com a câmera nas mãos do operador (também existiam filmes captados dessa forma) ou sob trilhos, para dar alguma movimentação (idem). Mas o segundo ponto de atenção para esse filme, sob o ponto de vista técnico, é o deslocamento perfeito da câmera acompanhando o narrador através das diversas salas do palácio, sem trepidações, através do acessório Steadicam. Seria impossível fazer o mesmo utilizando dollys e uma imensidão de trilhos mantendo o mesmo tipo de movimentação.

Voltando no tempo para a década de 70 vamos encontrar um operador de câmera americano da Philadelphia chamado Garrett Brown, buscando incessantemente uma solução para um antigo problema do cinema: como estabilizar imagens capturadas com a câmera na mão e deixá-las parecidas com as capturadas com os tripés ou dollys.

O problema estaria resolvido se fosse possível isolar a câmera das trepidações causadas pelos movimentos do operador. Mas... como conseguir isso? Brown pensava na inércia, uma das propriedades da matéria: ao carregar uma pesada escada de pintor, embora nosso corpo efetue movimentos de ondulatórios de sobe/desce durante o percurso, a escada pouco se movimenta neste sentido. Montou então em uma longa haste de metal um suporte para uma câmera de 16mm em uma das extremidades e colocou alguns pesos na outra para contrabalançar a peso da câmera.

Fez a seguir diversos testes com sua invenção, ao longo dos quais algumas idéias iam surgindo para melhorar o sistema. Assim, a barra foi substituída por um paralelogramo para manter a câmera sempre na posição vertical e um suporte para a mão foi acrescentado no ponto central do mesmo, para direcionar a estrutura para cima e para baixo ou para os lados. O peso disso tudo isso era suportado por um sistema de cabos, ligando o ponto central do paralelogramo a uma alça apoiada em seu ombro. Faltava ainda resolver um problema: como a câmera ficava bem longe dos olhos do operador, não era possível enxergar seu visor. A solução: um cabo flexível de fibra óptica de 8mm de diâmetro ligava o visor da câmera a um suporte fixado na cabeça do operador, com um visor ali instalado bem defronte a seu olho. Nascia assim o embrião do futuro Steadicam.

Mas outros aperfeiçoamentos eram ainda necessários. Os resultados filmados eram bons, mas a estrutura era demasiado pesada e desajeitada. Brown então decidiu reformular totalmente seu invento: para aumentar a resistência a movimentos do conjunto, separou a pesada bateria do corpo da câmera, distribuindo assim o peso do conjunto através de uma estrutura de tubos aos quais estes componentes foram afixados. Para isolar o conjunto câmera / bateria de movimentos de inclinação construiu um mecanismo onde o mesmo era apoiado através de um pino em uma haste, podendo mover-se livremente. A haste suportava o peso do conjunto, mas não transmitia a ele movimentos angulares (inclinações para os lados, mantendo o conjunto de pé, na vertical), mesmo princípio utilizado por alguns brinquedos que equilibram-se através de um pino sobre uma haste vertical. Para isolar a haste dos movimentos do operador, usou dois paralelogramos articulados com molas, fixados um ao outro, retirados de suportes de lâmpadas de escrivaninhas de escritórios. Finalmente, um colete preso a seu tórax trazia uma estrutura na qual o paralelogramo livre era afixado. A idéia era a mesma, mas o sistema em nada se parecia com o original. Os resultados dos testes confirmaram: o que já era bom ficou melhor ainda.

Estávamos em 1973 e Brown patenteou seu protótipo, dando a ele o nome de Brown Stabilizer. Fez outros aperfeiçoamentos, entre eles a troca do visor preso à cabeça do operador por um pequeno monitor fixado na estrutura tubular onde câmera e bateria já eram montados. O peso do monitor ajudava ainda mais na estabilização do conjunto, contribuindo para a distribuição da massa do mesmo. E o fato do monitor ficar longe do olho do operador não contava tanto, como até hoje, uma vez que sua função é o enquadramento da imagem. A questão do foco e outros ajustes era resolvida com presets previamente ajustados na câmera, hoje em dia através do monitoramento e controle remoto desses parâmetros na câmera.

E com esta reformulação Brown deixava de lado um dos objetivos de sua invenção original com a haste de ferro: que a câmera pudesse ser levada pelo dispositivo desde acima de sua cabeça até o nível de seus pés: seu alcance agora ficava bem mais reduzido. Por outro lado, o conjunto ganhava muito em estabilidade e agilidade.

Com esse protótipo Brown filmou um demo de 10 minutos e o enviou para diversos diretores de cinema, na tentativa de comercializar seu invento. Procurou também diversas empresas, inclusive a famosa Panavision, sem sucesso, até encontrar uma pequena e recém criada empresa, chamada Cinema Products, que se interessou pelo seu estabilizador de câmeras. Seu proprietário na época, Ed DiGiulio, sugeriu a Brown que trocasse o nome "Brown Stabilizer" por "Steadicam", um nome muito mais apropriado para a divulgação e comercialização daquele equipamento, uma vez que resumia em uma única palavra seu objetivo: estabilizar câmeras.

Seu criador e seu invento não podiam estar mais certos quanto a revolução que causariam no mundo das artes visuais: em 1978, Garrett Brown e a Cinema Products Corporation ganhariam um Oscar (e um Emmy 12 anos após) pela inovadora criação. O filme Bound for Glory (Esta Terra é Minha Terra), de 1977 - o primeiro filme a utilizar Steadicam em algumas de suas cenas, operado por Garrett - ganharia também um Oscar de Melhor Fotografia. A seguir Garrett operaria uma das câmeras utilizadas no filme Rocky (Rocky, O Lutador), também montada em um Steadicam. Na sequência viria Marathon Man, onde o equipamento se destacaria ao permitir que a câmera seguisse os personagens em meio a uma multidão nas ruas de um distrito de Nova Iorque, feito impossível de ser realizado antes sem perturbar a vida natural do local e sua espontaneidade com a instalação de trilhos para mover a câmera sobre um dolly.

O trabalho no filme seguinte, The Shining, do renomado diretor Stanley Kubrick nasceu do seu entusiasmo após ter assistido ao demo enviado por Brown. Para este filme, Garrett criaria uma nova possibilidade de montagem do equipamento, com a câmera invertida, ou seja, bateria e monitor na parte superior da estrutura tubular e a câmera localizada na parte inferior. E, ainda, uma nova forma, opcional de segurar o equipamento, utilizando as duas mãos ao invés de uma, cada qual fornecendo um movimento diferente para a câmera. Finalmente, pela primeira vez era utilizada em algumas cenas uma câmera com captação de som (Arri BL).

Muitas modificações viriam a seguir ao longo dos anos, tendo sido adicionadas diversas melhorias e modificações, grande parte como resultado dos trabalhos desenvolvidos pelo próprio Garrett, tornando o equipamento mais versátil e mais fácil de usar. A câmera, antes fixa na estrutura, passava a poder ser removida com facilidade. Câmeras de 35mm, 16mm e vídeo podiam ser utilizadas. O monitor ocupou diversas variações de posição ao longo do tempo, até localizar-se na posição intermediária entre as baterias e o suporte para a câmera. Sua tela, no início P&B passou a ser em fósforo verde (semelhante à dos antigos computadores), para melhorar a visibilidade em locais sob Sol aberto.

Para controlar o foco (trabalho realizado pelo assistente de foco, enquanto o operador concentra-se nos movimentos da câmera), um equipamento transmissor / receptor de rádio foi desenvolvido para ser instalado no Steadicam. Desta forma, o assistente, remotamente, consegue controlar o foco, enviando comandos que acionam servo-motores controladores da movimentação das lentes. Adicionalmente, consegue-se controlar também a íris e o zoom. Um transmissor de vídeo capta a imagem exibida no monitor afixado na estrutura do Steadicam e a envia para um receptor localizado em uma mesa, através do qual o diretor e sua equipe podem conferir o que está sendo registrado. Estas e diversas outras implementações e aperfeiçoamentos foram tornando ao longo do tempo o Steadicam um equipamento cada vez mais resistente e ágil nas tomadas de cenas.

Do cinema o Steadicam passou para a TV em 1976, no show de entrega do Emmy Awards. Viriam a seguir utilizações em esportes, concertos de rock e diversos outros eventos e seriados.

Em 1990 surgia o Steadicam Jr, destinado a câmeras semi-profissionais de vídeo; menores e bem mais leves do que as câmeras empregadas em cinema, permitiram abolir-se o colete ao qual o equipamento é preso em sua versão original. No Steadicam Jr, a haste na qual é afixada a câmera é suportada diretamente com uma das mãos e o direcionamento da câmera realizado com a outra mão. Um pequeno visor do tipo LCD, fixado à haste permite monitorar o que está sendo gravado. O Steadicam chegava ao alcance do videomaker.

A seguir diversas companhias desenvolveram clones do estabilizador e passaram a comercializá-los, incluindo pequenas modificações e melhorias. Ed DiGiulio vendeu sua empresa e o Steadicam passou para as mãos da The Tiffen Company. Brown a seguir desenvolveria outros tipos de estabilizadores: a SkyCam (suspensa por cabos sobre estádios de futebol e controlada remotamente) e as DiveCam e MobyCam (para uso em esportes olímpicos aquáticos).

No filme Arca Russa o sistema completo pesava 35Kg, suportados o tempo todo durante o plano sequência de 96 minutos por Tilman Buttner, um dos mais destacados operadores europeus de Steadicam, que também atuou no filme como diretor de fotografia. Preparo físico é um dos requisitos para operar os equipamentos profissionais mais pesados. Mas seja qual for o modelo de Steadicam, tornar-se capaz de operar um deles exige muitas e muitas horas de paciente treino: o operador é parte do sistema, depende dele a captação das imagens como se a câmera estivesse em um dolly. Fato esse que valoriza esses profissionais e suas obras, como o belo trabalho em Arca Russa.